O que aprendi em +60 dias desenhando sem usar a borracha

Laís Lara Vacco
L'art
Published in
7 min readApr 29, 2024

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Captura de tela dos desenhos feitos no Procreate

Quando eu era mais nova, costumava desenhar com bastante frequência, especialmente durante as aulas. Sentia que o desenho me ajudava a canalizar minha energia e ansiedade.

Até hoje, quando desenho, ainda tenho essa sensação. É como se eu desacelerasse, e no final, tenho algo para olhar e recordar daquela pausa.

Apesar de sentir isso, essa é uma atividade que deixei de priorizar por muitos anos. Mas com o tempo, percebi que ela fazia falta e decidi trazê-la de volta. Só que não tem sido algo fácil para mim. Com o trabalho em tempo integral, projetos avulsos de freela e outras responsabilidades, o desenho acaba sendo uma das primeiras atividades que deixo de priorizar.

Foi então que decidi 'gamificar' essa atividade.

Adoro a área de UX design porque é algo que consigo aplicar na minha vida. Gamificação é basicamente o uso de elementos de jogos em um sistema específico para tornar o processo mais prazeroso — assim como bons jogos são gostosos de jogar.

Meu primeiro passo foi trazer visibilidade. Tanto para mim, quanto publicamente. A pressão social tem um efeito sobre mim, então tento usar ela ao meu favor.

Criei um Instagram de desenhos e, mesmo com uma audiência mínima, declarei quantas vezes por semana eu publicaria por lá. Isso me ajudou a me manter comprometida.

Captura de tela do meu Instagram

Por 2 meses, segui a regra que criei para mim mesma. Fiquei desenhando e publicando esses desenhos, que eram no estilo de metáforas ou pensamentos visualizados.

A jornada estava indo bem, até que comecei a me sentir sobrecarregada com outros projetos e resolvi abrir mão desse formato de desenho, pois ele demandava um bom tempo para eu concluir.

Nesse momento perdi o ritmo e foi quando resolvi começar o desafio de desenho de observação sem usar a borracha.

Dessa vez, acrescentei algumas limitações:

  • 30 dias de desenho de observação
  • Não posso usar a borracha
  • Tudo bem pular um dia, mas não mais do que 2 dias seguidos.
  • Se eu não puder concluir um desenho, pelo menos desenhar por 5 minutos.
  • Usar o mesmo traço por pelo menos uma semana.
  • Desenhar algo relacionado ao dia ou marcante daquela semana.
Captura de tela dos desenhos feitos no Procreate — de forma digital.

Por que não usar a borracha?

Os desenhos de observação geralmente seguem um estilo realista. É uma maneira de aprender a observar, entender as formas, luz, sombra e a perspectiva do que está sendo observado.

Mas esse tipo de desenho parece levar a um realismo perfeccionista. É uma reprodução da realidade com tanta precisão que às vezes se confunde com uma fotografia. Essa perfeição já não me interessa mais.

Não usar a borracha é uma forma de me ajudar a tornar o erro parte do desenho, desafiar minha criatividade e apego. Também é uma maneira de silenciar aquela vozinha interna que insiste que aquilo nunca está bom o suficiente.

Se consigo ou não integrar o erro de forma criativa é outra história, mas sei que ele está presente e faz parte do resultado.

Não demorou muito para eu perceber que esse tipo de desenho é a própria analogia da vida.

“A vida é a arte de desenhar sem borracha.” — atribuída a John W. Gardner

Momentos na praia desenhados com caneta e sem cores. Quando digo caneta, é o estilo de um dos brushes do Procreate. Todos os desenhos foram feitos digitalmente.
Recordações aleatórias feitas com traço à caneta e sem cores

Aprendizados dessa jornada

Primeira tentativa de desenhar a janela a lápis. Só no meio do desenho percebi que faltaram dois buracos. Desenhei ela novamente outro dia. Dessa vez, acertei os 8 buracos! :)

Priorizar meu olhar e como me sinto.

A precisão nunca foi meu objetivo, mas levei alguns dias até perceber que ainda estava apegada a desenhar detalhes do que via.

Com o passar dos dias, fui ficando mais confiante. Comecei a ocupar melhor o quadro e a ‘soltar’ mais o traço. Também comecei a priorizar meu olhar e como me sentia em relação ao que estava vendo, em vez de focar apenas na representação da realidade.

As coisas que desenhava passaram a ser menos uma referência objetiva e mais uma inspiração. Me dei a liberdade de ignorar o que não me causava tanto interesse.

Uma lua crescente, um dia de chuva e Psilocybe Cubensis. Feito com caneta, guache e cores.

Os limites me desbloqueiam.

Comecei com os limites de não usar a borracha, de ter um tempo mínimo para desenhar, de limitar o tipo de caneta (brush) que uso, a quantidade de cores, o tipo de desenho e assim por diante.

É até meio estranho reconhecer isso. Pensar que criei tantos limites para me libertar e permitir que desenhe. Esse é um dos aprendizados mais contraditórios que tive nos últimos anos e observei nessa prática.

Se antes a mera ideia de fronteiras me assustava, agora a falta de limites é que parece assustadora.

Todos os limites, explícitos ou implícitos, reduziram a quantidade de decisões que tenho que tomar. Isso me ajudou a ser mais criativa e trouxe a visibilidade que precisava para saber que concluí algo.

Uma floresta de sequoias inspirada no livro 'The Legacy os Luna'. Nosso vaso de crótons e algumas plantas que admiro quando passo pela rua. Traço com cores a guache e caneta.

Apagar e refazer não significa que o resultado ficaria melhor.

Muitas vezes me pego pensando que, se tivesse a chance de refazer um traço torto, o resultado do desenho seria melhor. E é isso que faço na vida também, em algumas decisões.

Pensar que o resultado seria diferente acaba sendo uma distração por capricho, considerando as muitas variáveis envolvidas e o contexto dinâmico que impactam o desenho.

Eu certamente levaria mais tempo, mas não teria nenhuma garantia de que esse investimento seria proporcional a qualidade do resultado.

Óculos do meu parceiro e nossa peteca. Com o tempo fui aprendendo a adicionar mais intensidade no traço.

Mudar minhas expectativas traz mais satisfação.

É difícil evitar as expectativas, especialmente quando desenho o rosto de alguém. Mas sabendo que não vou apagar os erros, tento desapegar do resultado e foco na prática.

Já sei que vou fazer traços tortos e errar as proporções do desenho. Inclusive, por desenhar no tablet, frequentemente faço gestos na tela que geram um traço aleatório.

Quando consigo mudar minha expectativa do resultado para a prática, fico contente só por parar para desenhar.

Tentativa de desenhar pessoas. E por carinho a verdadeira aparência delas, vou evitar nomeá-las. ❤
Outra tentativa de desenhar pessoas, mas dessa vez com cores. Muito mais divertido de fazer. O chimpanzé foi inspirado no livro 'My life with Chimpanzes' de Jane Goodall.

Ressignificar e integrar o erro.

Cada erro vem com uma decisão implícita. Muitas vezes aproveito para criar uma sombra em cima dele, ou reforçar outra parte do desenho, tornando aquele erro algo insignificante. Mas em certos momentos, decido deixar ele como aconteceu. Por mais frustrante que seja quando o erro acontece, tento lembrar das opções que tenho e percebo que ressignificar ou desapegar torna a prática mais leve. E muitas vezes me ajuda a ousar mais nos traços, o que torna o desenho mais interessante.

A boina do meu parceiro. Minha mão segurando um creme. E o carregador do tablet. No último desenho dá para ver riscos aleatórios que fiz sem querer quando fui mexer na tela.

Desenhar também é minha forma de meditação.

É tão fácil para a mente se basear em suposições e abstrair os detalhes de algo para tornar o ser humano funcional no dia a dia que, mesmo quando olho para algo, muitas vezes não enxergo como aquilo realmente é.

Já me peguei desenhando uma samambaia e, quando fui desenhar as folhas, acabei representando elas como minha mente supôs que seriam.

No meio disso, parei para olhar a samambaia com mais atenção. Percebi que cada folha intercalava a posição da folha do outro lado e que, somente quando chegava à ponta do galho, ela diminuía de tamanho.

Durante o desenho, também observo como me sinto. Acredito que, assim como um observador afeta a interação ao ser visto, começo a reconhecer melhor meus pensamentos e emoções. Observo eles passarem.

Um prédio na Estônia e duas recordações em um bairro de Florianópolis. Traço com caneta, guache e com cores.

Não depender da motivação para fazer algo.

Se quero transformar algo em um hábito, preciso facilitar que isso aconteça. Parar para desenhar, por exemplo, me tira do modo automático do dia, e por isso o começo às vezes é desconfortável.

Mas sei que me sinto energizada quando consigo fazer essa pausa. Por isso me ajuda saber que vou desenhar só por 5 minutos. Depois que começo, a fricção inicial já foi eliminada e eu me animo a continuar desenhando. Foram raros os dias em que desenhei por apenas 5 minutos.

Pretendo continuar esse desafio e seguir experimentando novos traços. Mas por enquanto é isso.

Abaixo estão outros desenhos que fiz.

Desenhos no estilo lápis de observações de objetos que estavam presentes naquele momento: um vaso de plantas, uma xícara de café e uma xícara de tereré.
Desenhos no estilo lápis de lugares que vejo frequentemente e gosto de passar por eles.
Desenhos no estilo de caneta e guache com cores. O primeiro é um canto de nossa lavanderia, depois uma garrafa com macramê e um canteiro de plantas.
Desenhos no estilo de caneta e guache com cores. Um vaso de suculenta, uma xícara de café e uma bota de uma pessoa caminhando em uma trilha.

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