5 formas que o Design vem ajudando a quebrar paradigmas do Setor Judiciário

Uma perspectiva sobre Legal Design, Visual Law e o impacto neste setor.

Laís Lara Vacco
UX Collective 🇧🇷

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Ilustração de uma mulher lendo um documento e um homem com vários livros lendo um deles. Ambos de social e com cara de que estão entendendo e falando do assunto. Outra pessoa, sem roupas sociais está assistindo no canto e com cara de dúvida.

Até pouco tempo atrás, era só falar em setor judiciário que me vinha em mente pessoas usando roupa social e longas papeladas, com um linguajar bem inacessível (o tal do “juridiquês”).

Também já li histórias inspiradoras de pessoas como a Evilanne ou a Mariana que deixaram este setor e migraram para UX design, especialmente pelas burocracias e falta de empatia que existia no ambiente de trabalho.

Por esses motivos, o mercado jurídico não me chamava atenção.

Mas esse ano tive um papo com o Henrique, COO da Arbitralis — uma lawtech brasileira e câmara de arbitragem 100% digital — e fiquei animada com o que ouvi. A missão da empresa de facilitar o acesso a justiça e tornar ele mais rápido, e os desafios de produto me interessaram.

Aceitei o desafio e entrei pra esse setor. E desde que comecei a atuar na empresa, tenho visto que alguns dos paradigmas que eu tinha tem começado a mudar e a mentalidade do design é uma das propulsoras dessas mudanças.

Como tenho estudado mais sobre esse universo das lawtechs, resolvi resumir nesse artigo alguns dos aprendizados que tenho visto e ouvido relacionado a essa área.

Acredito que falar sobre isso é uma forma de reforçar essas mudanças, de convidar mais pessoas a falarem sobre a importância do design neste setor e, de reconhecer que a minha a visão talvez já estivesse um pouco ultrapassada, assim como os paradigmas. 😶

Legal design: o termo que chama atenção da importância do design no setor jurídico

Seria difícil falar sobre a quebra de paradigmas nesse setor sem trazer o termo 'Legal design'.

Legal design é essencialmente a mentalidade e as metodologias de design aplicadas ao mundo do direito — o que inclui as lawtechs e legal techs.

Embora pareça ser um campo distinto do design, especialmente pela complexidade do campo do direito, ele não é. Assim como o design é aplicado em setores da saúde, finanças, educação, etc. Ele também está sendo aplicado no campo do direito, mas com um termo específico.

Eu sei, também fiquei curiosa em saber por que criaram um termo específico para esse setor.

Uma das minhas hipóteses é de que foi preciso destacar a importância do design com uma roupagem que chamasse a atenção do setor. Em outras áreas essa importância já começou a ficar evidente mais cedo, como Fintechs, Healthtechs, Edtechs, etc.

Enfim, talvez esse seja assunto para outro artigo. Se tiver outras hipóteses e evidências, comente aqui e deixe links de artigos e estudos. 🤓

Um círculo representando o design com setas saindo dele e apontando para áreas da saúde, healthtechs, finança, fintechs, educação, edtechs e direito, legal techs. Abaixo do direito está escrito Legal design, com um pontilhado conectando o design e o setor do direito.

Nas palavras da Margaret Hagan, diretora do Legal Design Lab na Stanford Law School, que popularizou esse termo lá por meados de 2014:

Ele traz uma cultura de design thinking, pesquisa de usuários e métodos de design centrados no ser humano para o mundo do direito. E, no processo, define novas métricas importantes para a forma como operamos no mundo jurídico. Estamos entregando serviços que são utilizáveis, úteis e envolventes.” — Margaret Hagan em seu livro LawByDesign

Desenho inspirado no livro Law By Design por Margaret Hagan

Ela é autora do e-book gratuito Law By Design, que foi inspiração para essa imagem acima. O livro é em inglês e bem agradável de ler. Percebe-se logo de cara que ela se importou em trazer as técnicas que ela mesmo fala no livro, com uma linguagem acessível e o uso de imagens para facilitar a comprensão do assunto.

Lá ela explica a importância da aplicação do design para tornar os sistemas e serviços jurídicos mais centrados no ser humano, mais utilizáveis e satisfatórios.

Para nós da área de design, o livro não traz muitas novidades em termos de design ou metodologias. Mas eu recomendaria ele para qualquer pessoa do direito que queira se atualizar sobre o assunto e também para designers com interesse em reforçar os aprendizados de design sob a lente das possibilidades de aplicação no setor jurídico.

Obs.: Acredito que a tecnologia no sentido de produtos eletrônicos não necessariamente deva estar envolvida para existir o ‘legal design’. Mas pensando no significado da palavra tecnologia, do grego tekhnē, que significa “arte, habilidade, astúcia da mão”, e -logia, que significa “estudo”, a tecnologia é necessária. Pois ela se refere ao conhecimento ou uso de ferramentas, materiais ou processos para resolver problemas. O que seria o próprio processo de design.

Visual law: outro termo que reforça a importância do design da informação nos elementos jurídicos

'Legal design' envolve toda a prática do design no campo jurídico. E o visual law é o design da informação aplicado neste setor.

Mas vejo que o termo vem sendo usado como sinônimo de legal design. O que pode de certa forma trazer ainda mais confusão ou ambiguidade.

Ele ganhou mais popularidade no Brasil do que em outros países, como se pode ver nessa pesquisa que fiz no Google Trends entre Maio de 2014 e Maio de 2023.

Google trends de ambos os termos desde maio de 2014 até maio de 2023.

Ele é basicamente associado à aplicação do design em contratos, petições, peças e documentos jurídicos, em geral.

E, quem é de design, sabe que embora tenha 'visual' no nome, não quer dizer que seja somente um processo visual.

É importante ressaltar que a parte visual é somente a ponta do iceberg. Até chegarmos no visual, existe todo um processo investigativo do problema e das necessidades do público até que chegarmos nos rascunhos e iterações de soluções.

Desenho inspirado na imagem do IxDF, sobre os 5 elementos de UX por Jesse James Garrett

E então, como o design, ou legal design, tem quebrado os paradigmas do mercado jurídico?

Aproveitando para dar um pouco mais de contexto sobre o assunto, mês passado, eu e a Patrícia, líder de comunicação e marketing da Arbitralis, participamos de um evento de tecnologia voltado ao setor jurídico, o Future Law Experience.

Valeu Henrique e Daniel, por terem investido nessa nossa experiência.

Nele, comecei a ter uma percepção mais positiva sobre as mudanças nesse setor. E inclusive a empresa que organizou o evento é uma Edtech voltada às transformações tecnológicas do universo jurídico, a Future Law.

Pensando no ensino mais tradicional do direito, ter uma Edtech voltada a esse público e mercado, mas com assuntos sobre transformações tecnológicas e discussões alternativas, é um primeiro paradigma sendo quebrado. Algo que o ensino tradicional de direito inda parece não trazer. (Esse é um tópico interessante, mas neste artigo vou focar em outros paradigmas especificamente relacionados ao design).

Abaixo, fiz uma lista de tópicos resumidos baseado no que absorvi do evento, em podcasts, no curso de Visual Law que fiz da Future Law, e leituras.

1. Mais empatia e foco nas pessoas usuárias do sistema

Animação de um vale com pessoas do mundo jurídico de um lado e pessoas leigas e outro lado. Uma ponte, que representa o design, é criada entre esse vale.

Se antes uma pessoa fora da área dessa área precisava contratar um profissional de direito só para entender um documento jurídico, o design chega enfatizando a importância de trazê-las para o centro. A responsabilidade passa a ser dos profissionais de direito em comunicarem de maneira mais compreensiva e acessível.

Seja contratando designers ou aprendendo sobre as metodologias do design, é necessário ter empatia e buscar atender as dores e necessidades do público.

Apesar da ilustração acima focar em pessoas leigas, isso não quer dizer que a empatia se aplica somente a elas. Também se deve considerar os juízes e outras pessoas envolvidas no processo.

O que me leva ao tópico abaixo…

2. Linguagem mais acessível e com elementos visuais

O linguajar jurídico é inacessível para pessoas leigas, mas dependendo do contexto e público, seja por necessidade de precisão legal ou por facilidade de compreensão, ele ainda é importante.

Na lawtech que trabalho, por exemplo, o público envolve pessoas leigas e pessoas do direito. Concluídos que devemos ser acessíveis para ambos, o que significa utilizar alguns termos jurídicos quando falamos com pessoas do direito.

Isso não quer dizer que a documentação para esse público deva ser extensa ou tediosa. Tenho visto pessoas do direito começando a utilizar técnicas de storytelling e persuasão para criar uma narrativa que favoreça o documento ser lido e a mensagem melhor transmitida. Claro, nos limites da lei.

A Tim é um desses casos, onde em parceria com o Studio de Criação Vila, eles reduziram um contrato de 40 páginas para somente duas. É muita diferença, né?

Uma comunicação mais direta e compreensível não só evita processos demorados e custosos, ela acelera também a resolução de conflitos e ajuda na própria linha argumentativa com o jurídico, que passa a perceber uma boa vontade da empresa em se fazer entendida ao seu público.

3. Um jurídico mais colaborativo e multidisciplinar

O setor jurídico costumava ser isolado das outras áreas. Uma ilha na empresa. E quando outra área trazia ideias inovadoras, era de se esperar que o jurídico não aprovaria.

Porém, um bom design requer colaboração e esse paradigma tem mudado.

A Mayara Souza, do time de legal da OLX, trouxe um caso interessante no curso de Visual Law, onde ela apresentou um estudo de caso sobre as dicas de segurança da OLX. Eles aplicaram o design da informação — ou, se preferir, visual law — para comunicar melhor os riscos e processos legais.

Durante essa construção, o time de legal achou que o marketing não os deixaria utilizarem o termo 'golpe' em suas comunicações. E eles descobriram que o marketing também achou que o jurídico não os deixaria empregarem esse termo.

Ninguém sabia dizer de onde veio esse tabu, mas ele só foi quebrado quando as áreas passaram a trabalhar juntas. Isso resultou não só em uma melhoria nos processos internos, mas em uma comunicação mais assertiva com os usuários.

4. Uso de metodologias ágeis no dia a dia

No processo de design, ou quando falamos em design thinking, trabalhamos colaborativamente e colocamos o usuário no centro do que fazemos. No manifesto ágil, a essência é parecida, os indivíduos e as interações são colocados acima de processos e ferramentas.

E acredito que nem precisamos falar especificamente em Scrum ou Kanban com suas cerimônias e regras para vermos a agilidade acontecendo.

Nesse cenário, as formas de gestão mais distribuídas ou com menos centralização de poder, começaram a ganhar mais visibilidade nesse setor.

Reconhecer os papéis, responsabilidades e habilidades das pessoas, permite que cada um desempenhe o seu trabalho com autonomia e pró-atividade, dando visibilidade do progresso do trabalho e desafios, ao mesmo tempo, colaborando com as demais pessoas. Buscando feedback continuamente para entender melhor os problemas e evoluir as soluções.

5. A busca pelo conhecimento de UX design

Além de contratar designers, comecei a ver diversos profissionais do direito buscando conhecimento em UX design para somar nas suas habilidades.

Esse é o exemplo da Isabela Godoy. Uma legal designer formada em direito e PhD em Tecnologia e Design. Ela é uma das pessoas que me chamaram atenção quando ouvi ela falar sobre a importância do Legal Design. E lendo mais sobre seu trabalho no LinkedIn, ela diz:

“…Desde a graduação venho me incomodando bastante com a forma que o Direito tradicional existe no mundo. O universo jurídico deveria ser compreensivo e compreendido por todas as pessoas, mas na real ele é super exclusivo e excludente. Eu quero mudar isso. Acredito que o Direito pode e dever ser para todos, todas e todes. E eu luto por essa mudança.” — Isabela Godoy

A Monyze Almeida também é advogada e tem atuado como legal designer. Ela inclusive deu a aula de UX Writing no curso de Visual Law e uma frase que ela compartilhou, me marcou:

“Quem só sabe Direito, nem Direito sabe”. — Pontes de Miranda.

Qual o impacto dessa quebra de paradigmas?

O design nesse setor vem quebrando paradigmas no mundo jurídico e também mostrando resultados positivos nos processos.

No caso da OLX, a Mayara Souza comentou que quando existia alguma ação contra a empresa, o juiz reconhecia que a empresa tinha vontade de informar seus usuários.

Nessa notícia, falam sobre a OLX vir utilizando técnicas de Visual Law em seus documentos desde 2020, e desde então, passou de 58% para 96% de êxito em seus processos.

E essa pesquisa feita com mais de 500 juízes e juízas estaduais, mais de 70% responderam que o uso de elementos visuais facilita as análises das petições, desde que o uso seja moderado. A pesquisa foi coordenada pelo advogado Bernardo de Azevedo.

Novamente, a importância da mentalidade do design vai muito além do visual, ela impacta os processos internos, a colaboração entre as pessoas envolvidas e o mais importante, coloca o ser humano no centro.

Ainda vejo que o setor usa os termos de forma ambígua ou há certa confusão ao falar sobre eles, como se fossem distintos do design.

E, se você é da área de design, como eu, talvez não tenha algo novo em relação ao que você já faz no dia a dia. Os termos são apenas uma oportunidade para reforçar a importância do design nesse setor.

Ao mesmo tempo, é empolgante ver um novo mercado, que já foi mais conservador e distante do público final, se abrindo para uma experiência que leva em conta todas pessoas envolvidas.

É importante aprendermos mais sobre esse setor e seguirmos estimulando transformações.

E, enquanto o termo 'legal design' vem ganhado popularidade, acredito que ainda há muito o que explorar no setor. No Brasil, por exemplo, os estudos de caso que tenho encontrado são mais voltados às documentações e contratos, o que já é um grande avanço.

Mas assim com a Margaret Hagan falou em 2017 em um artigo sobre Service Design no sistema jurídico, seria incrível ver exemplos de service design neste setor.

Como ela mesma disse no livro Law by design, um dos objetivos do legal design é criar um 'melhor front-end para o sistema jurídico e um melhor back-end' também. E o design de serviço atende justamente as interações das pessoas envolvidas em ambos os lados, seja no "front-end", onde estão as pessoas leigas, e no "back-end", onde estão os profissionais de direito, juízes, a corte, etc.

Sigo ansiosa para ver mais evoluções nesse mercado e mais pessoas do direito abraçando a mentalidade do design. E também animada pra fazer parte disso.

Sei que não existe uma abordagem única, mas acredito que a inovação, aquilo que fazemos para melhorar a vida das pessoas de forma diferente da que vem sendo feita, só acontece quando conseguimos entender as necessidades das pessoas envolvidas e ter um olhar mais diverso.

Como diria Jurgen Apello no livro How to Change the World:

"Não existe uma abordagem única para todos. E apenas pedir às pessoas que mudem raramente é suficiente. A diversidade é o que faz os sistemas complexos funcionarem e, portanto, uma diversidade de métodos é crucial ao lidar com pessoas."

Obrigada por ler até aqui!

E um super obrigada ao meu parceiro Cali (Renato Caliari), que ajudou com ótimos questionamentos e também teve a paciência de revisar e contribuir com este artigo.

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